Participe dessa instigante reflexão sobre os limites entre a arte, a ciência e o marketing… e o que fenômenos populares como a Anitta e o Sertanejo Universitário tem a ver (ou não) com isso.
Por Davi Pires Andrade Brescia
Um óculos de grau deixado no canto da galeria. Talvez, tenha caído de uma bolsa, ou mesmo deixado intencionalmente enquanto atavam-se os cadarços. Independente da forma como se perdera, alguém se encontrava privado parcialmente de apreciar as obras de arte locais. Este foi o pensamento – de fato, ingênuo – do senhor que apanhou o adereço de súbito, até ser advertido pelo segurança que tratava-se… da “obra”. O óculos, ali, naquele canto, era a arte. Mais uma peça pregada pelo pós-modernismo1.
Desde “A Fonte” de Duchamp (1917) um novo viés tem permeado a mentalidade artística: a tentativa de uma desconstrução da realidade por meio do subjetivismo. Mais uma faceta da velha questão requentada em fogo estranho: o que é arte? A arte sempre teve sua importância como um retrato bastante preciso da mentalidade de seu tempo. Mas, como um fóssil que data sua época, a despeito de não ser ‘feito’ para tal, arte não tem a função de revelar aspectos do passado, apesar de fazê-lo bem. A propósito, arte, em si mesma, não se presta a nada. Não é um artefato funcional, uma tecnologia. Historicamente, o conceito que atravessou séculos, sagazmente lembrado pelo filósofo inglês Roger Scruton2, é o da arte como o belo e a evocação da transcendência.
Mas, nas últimas décadas, essa característica, considerada inerentemente artística, tem confundido também alguns teóricos do marketing. Stephen Brown3 é um desses pensadores que advoga abertamente credenciais artísticas para a disciplina. Segundo ele, a profissão, por emanar beleza, não deveria ser vista de outra forma, senão artisticamente. Quanta ironia. Para o autor, cores, textos, formas e sentidos, que jorram dessa fonte, são provas incontestes do seu pendor artístico. O mesmo pós-modernismo que julga passé a arte como expressão de beleza, batiza o marketing como arte sob o mesmo critério sem qualquer pudor.
“a arte não precisa de justificativa”
Essa discussão, apesar de acompanhar os teóricos do marketing desde os seus primórdios, não parece ser justificável. O marketing tem nome próprio, tem por que, tem funcionalidade, tem carteira assinada e, por vezes, passa no RH para acertar as contas. O marketing tem, sim, suas belezas, tanto gerencialmente – sobretudo para quem lida com publicidade e propaganda – quanto academicamente, em suas compreensões, limites e contribuições que passeiam entre a virtuose matemática e a parcimônia de singelos modelos pragmáticos. Já, sobre a arte, dizia Hans Rookmaaker4, proeminente filósofo e teólogo holandês: “a arte não precisa de justificativa”. Ela, apesar de compreender qualquer assunto sem ressalvas, ontologicamente, é livre de qualquer compromisso, ao contrário do seu primo rico.
O que está em jogo nessa discussão são compromissos epistemológicos pessoais na forma de compreender o mundo, cosmovisões concorrentes. Enquanto o realismo parte da premissa que o mundo exterior é factual, por mais que não se possa conhecê-lo integralmente, o antirrealismo postula que o que sabemos são meros aspectos observáveis. Logo, não teríamos qualquer conhecimento último sobre o universo, o que torna toda e qualquer busca científica uma rematada tolice. Ora, se nenhuma verdade confiável pode ser extraída do que vemos, se nenhum método é confiável para inferir sobre o real, por que não criar uma realidade que se enquadre aos ‘meus’ critérios subjetivos? Sob essa ótica, realidade é um mero ponto de vista.
A contradição do argumento subjetivista fica evidente com o desmascaramento de um dogma: marketing é arte! É isso, é aquilo, é aquilo-outro. Verdades absolutas impostas goela abaixo. Quem não acredita no mundo exterior para além de sua experiência introspectiva, como pode se valer de categorias realistas para classificar a existência e – mais! – prescrever teoricamente um agir específico em nome de uma subjetividade alheia? Cada um cria a sua realidade, contanto que seja a minha.
#Anitta. Arte ou Marketing? #Sertanejouniversitário . Arte ou Marketing?
Não, não é porque tenho o nariz do meu pai e os olhos da minha mãe, que posso dizer que sou outra pessoa, senão eu mesmo, apesar de ter sobrenome, sangue e muita coisa em comum com os dois. Simples assim, também é o marketing. Tem um ‘quê’ de economia, bebe na fonte da sociologia, fala e vive psicologicamente e tem ares de artista. Mas, não é economia, nem sociologia, sequer psicologia e muito menos arte. Marketing conceitualmente vêm de mercado, examina trocas comerciais em um sentido específico: aquelas que interessam a duas ou mais pessoas, que apontam para um valor que justifique uma perda. Abro mão do meu dinheiro pelo seu serviço e, ainda assim, saio no lucro! Então, quais são as características, leis e postulados desse fenômeno? Como compreender, controlar e interferir nessa realidade, mostrar-me mais atraente em favor do meu market share? Isso é marketing.
Aos opositores de plantão, deixo, aqui, o outro lado do espelho como reflexão. Se não é possível dizer que marketing é arte (ontologicamente), devido aos seus propósitos (teleologia), o inverso também pode ser criticado. Até quando músicas ou obras de arte autoproclamadas, em geral construídas pelo e para o mercado, ainda podem ser consideradas como tal, uma vez comprometidas existencialmente com a performance de vendas como função ou telos? Talvez, seja o caso de perguntarmo-nos: #Anitta. Arte ou Marketing? #Sertanejouniversitário . Arte ou Marketing?
Me diga qual a sua teleologia que eu te digo sua ontologia.
Resenha elaborada na disciplina Marketing Contemporâneo do CEPEAD, ministrada pelo Prof. Dr. Plínio Rafael Reis Monteiro
Referências Bibliográfias
- g1. Visitantes confundem óculos no chão como obra de arte nos EUA. Planeta Bizarro 2 (2016). Available at: https://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/visitantes-confundem-oculos-no-chao-como-obra-de-arte-nos-eua.ghtml. (Accessed: 10th October 2019)
- SCRUTON, R. Why Beauty Matters. (London: BBC, 2009).
- Brown, S. Art or Science? Fifty Years of Marketing Debate. Mark. Rev. 2, 89–119 (2001).
- Rookmaaker, H. R. A Arte Moderna e a Morte de uma Cultura. (Ultimato, 2015).